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O porquê do surto moralizante no Brasil — cancelamento, woke e a nova moral digital

O porquê do surto moralizante no Brasil — cancelamento, woke e a nova moral digital

Vivemos tempos em que o moralismo mudou de roupa. Saiu da cartilha religiosa e entrou pelo feed, reinventando-se como “justiça digital”. A internet tornou todos nós fiscais do comportamento alheio: um deslize, uma frase fora de tom, uma opinião impopular — e logo se arma um tribunal. O Brasil não é exceção; ao contrário, parece viver um verdadeiro surto moralizante.

Mas será que é só um problema nosso? Ou estamos diante de um fenômeno global que encontrou aqui um palco fértil?

O cancelamento como espetáculo público

A chamada cultura do cancelamento é a versão contemporânea das antigas fogueiras públicas. Antes, bastava um sermão ou uma manchete para execrar reputações; hoje, basta um vídeo de 15 segundos no TikTok ou um print no X (Twitter). O boicote coletivo, que nasce de causas legítimas — como combate ao racismo, machismo ou corrupção —, rapidamente escorrega para linchamentos digitais, onde não há espaço para defesa ou proporcionalidade.

No Brasil, vimos isso em múltiplos episódios: artistas cancelados por falas antigas, influenciadores derrubados por incoerências, cidadãos comuns viralizados como “vilões instantâneos”. A “moça da janela do avião” virou exemplo recente: julgada em tempo real, ganhou milhares de seguidores justamente pela exposição. Cancelamento que, paradoxalmente, elevou sua relevância.

A geração woke e o risco do radicalismo

O termo woke nasceu nos EUA como elogio: estar acordado para as injustiças sociais. Mas, como toda bandeira cultural, virou rótulo. “Woke generation” hoje é também acusada de impor padrões de linguagem e comportamento quase impossíveis de seguir, criando novos códigos de pureza moral.

No Brasil, essa linguagem também chegou: trocas de termos em manuais institucionais, vigilância sobre palavras ditas em sala de aula, hashtags que sobem e descem conforme o “erro” da vez. Intenções nobres (inclusão, respeito) se misturam com práticas que lembram censura. Até Barack Obama advertiu: “criticar o tempo todo não é ativismo”.

É o paradoxo: ao lutar contra a intolerância, parte do movimento woke reproduz uma nova forma de intolerância — agora “progressista”, mas igualmente sufocante.

O moralismo como arma política

O moralismo digital não se limita à esfera cultural: virou moeda política. Partidos e grupos usam o cancelamento como arma, alimentando polarizações. A direita explora os “excessos woke” para se fortalecer como defensora da liberdade de expressão. A esquerda, por sua vez, denuncia cancelamentos seletivos e expõe a hipocrisia dos que defendem liberdade apenas para si.

No Brasil, vivemos diariamente a disputa de narrativas: a mesma fala pode ser celebrada ou crucificada dependendo de quem a profere. É moralismo seletivo — que revela menos sobre valores universais e mais sobre a guerra cultural em curso.

Máquina de escrever com a palavra CANCEL, simbolizando a cultura do cancelamento e o moralismo digital.
Foto de Markus Winkler na Unsplash

No campo do entretenimento, até o humor já escancarou essa dinâmica. No especial Selective Outrage (2023), Chris Rock ironiza como a sociedade escolhe cuidadosamente contra quem se revoltar: uns são massacrados pelo tribunal digital, outros escapam por conveniência política ou fama. A piada tem fundo sério — o moralismo virou seletivo e estratégico, não uma busca sincera por justiça. Em vez de princípios, muitas vezes é usado como arma política: serve para enfraquecer adversários, blindar aliados e manter o espetáculo do cancelamento girando. Rock mostra que a indignação atual não é só espontânea, mas curada como numa vitrine: escolhe alvos que rendem audiência, engajamento e capital simbólico.

A academia e a espiral do silêncio

Na universidade, o impacto é visível: professores e alunos pisam em ovos, temendo ser mal interpretados. Surgiu a espiral do silêncio, conceito da cientista política Elisabeth Noelle-Neumann: quando vozes dissonantes se calam para evitar isolamento. Resultado? Um ambiente onde apenas certas opiniões circulam, criando bolhas ideológicas que se autoalimentam.

O espaço que deveria ser o mais aberto ao debate crítico vira, ironicamente, um território de medo. Isto é um perigo! A academia e um lugar de construção de pensamento e ações. Se o meu pensar e agir já limita por medo do que o outro achará de mim, isso, por si só, reduz o ambiente para terrível fratura para as bases da democracia!

Karl Loewenstein falava da “democracia militante”: para se proteger de ataques autoritários, a democracia às vezes adota medidas igualmente autoritárias. O cancelamento é um sintoma disso: combatemos injustiças com ferramentas que também esmagam. Ao defender causas justas com métodos de linchamento, corremos o risco de minar a própria liberdade que queremos preservar.

Don’t Woke me Up

O moralismo sempre esteve presente na cultura brasileira, mas a internet o multiplicou e o turbinou. Hoje, uma geração inteira cresce sob o olhar do tribunal digital. O risco não é apenas individual — carreiras destruídas, reputações queimadas —, mas coletivo: a perda da capacidade de dialogar, ouvir, refletir.

Não se trata de defender o intolerável. Racismo, homofobia, misoginia e autoritarismo merecem enfrentamento firme. Mas o que precisamos discutir é como enfrentamos. A pergunta que fica: é possível combater o mal sem adotar os métodos que nos tornam igualmente moralistas e autoritários?

Enquanto não respondemos, seguimos entre dois polos: a necessidade de justiça e o perigo de transformar essa justiça em puro espetáculo. Como cantava o famoso duo dos anos 80 – Wham!, de George Michael e Andrew Ridgeley – “Wake me up before you go-go” é muito melhor do que Woke me up before I go-go.

Respostas de 6

  1. Gostei, João. Acho que sua tese faz muito sentido.
    Estou pensando aqui que estamos falando de um movimento parecido com o de um pêndulo, oscilando entre dois extremos, mas com uma tendência de atingir o equilíbrio no centro.
    Beijos

    1. Filipe, difícil dizer se o excesso é melhor do que a ausência, mas eu entendo o seu pensar e concordo que seja para algumas coisas. Tudo é tão relativo, né? O que é muito pra um, é pouco pra outro e por aí vai. A questão é: somos imaturos. Não é possível que descubramos o caminho certo de cara, o erro é natural. Do contrário, já seríamos perfeitos e não teríamos esse tipo de problema e nem a evolução existiria. Estaria tudo pronto. Abraço e obrigado pela leitura.

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