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Ser um só: a integridade psíquica do profissional moderno

Ser um só: a integridade psíquica do profissional moderno

O paradoxo da autenticidade

Nos tempos líquidos e modernos em que vivemos, a autenticidade deveria ser um grande asset (recurso) a favor do candidato a uma vaga de emprego no mercado corporativo. Entretanto, o que vemos, de fato, é que ela sofreu uma espécie de ‘reduflação’ — termo de Economia usado para descrever produtos que perdem qualidade e quantidade, mas mantêm o mesmo preço.

As empresas dizem buscar pessoas “verdadeiras”, “com propósito” e “que tragam o melhor de si”. Mas, na prática, o sistema de seleção continua baseado em filtros, algoritmos e expectativas padronizadas. Algumas plataformas como LinkedIn, Catho e Gupy se tornaram máquinas pasteurizadoras de candidatos para que o tempo de recrutamento e lucro sejam otimizados, e a possibilidade de erro na contratação minimizada.

O resultado é um paradoxo: quanto mais o mercado fala em autenticidade, mais obriga o indivíduo a performar versões de si mesmo para ser aceito, obrigando-o a ser um sem número de cópias microajustadas para caber na peneira ATS (Application Tracking System), ou Sistema de Rastreamento de Candidatos. Ela automatiza e organiza processos seletivos dentro do setor de Recursos Humanos.

O profissional contemporâneo se vê em um tabuleiro de identidades — cada uma moldada por uma plataforma, uma vaga, um público, forçado a ser ou tornar-se um ‘talento fit’, alguém com um hall espetacular de habilidades técnicas e competências emocionais exigidas, para se ajustar à cultura da empresa. A cada candidatura, um pequeno rasgo, um pequeno desmembramento e uma nova costura: a necessidade de ajustar o tom, o verbo, a persona formam a colcha de retalhos performativa.

Essa fragmentação, que parece estratégia, é na verdade um processo de desintegração silenciosa.
O sujeito começa a perder o eixo interno que sustenta sua coerência psíquica e emocional — aquilo que Erich Fromm, Carl Rogers e Byung-Chul Han descreveram, cada um a seu modo, como o risco do indivíduo se dissolver na expectativa do outro.

A coerência do self comunicante

A integridade psíquica é o que poderíamos chamar de coerência do self comunicante — a capacidade de manter uma unidade interna entre o que se pensa, o que se sente e o que se expressa. Quando o profissional precisa “editar a si mesmo” em excesso, essa coerência se rompe.

Erich Fromm via isso como o fenômeno do “homem mercadoria”: o ser humano que ajusta sua personalidade conforme o mercado.

“O homem moderno experimenta a si mesmo como uma mercadoria; sua energia e suas habilidades são investimentos que devem trazer lucro.”

Carl Rogers, na psicologia humanista, nomeou o mesmo processo de incongruência — a distância entre o eu real e o eu apresentado. Ele diz:

“Incongruência é o estado no qual existe uma discrepância entre a experiência real e a consciência do self.”

Byung-Chul Han, mais recentemente, chamou atenção para o sujeito da sociedade do desempenho: esgotado, hiperprodutivo, e cada vez mais distante de si.

“O sujeito do desempenho é mais rápido e produtivo, mas também mais cansado e mais solitário. Ele é explorador e explorado ao mesmo tempo.”

O ambiente corporativo, com sua obsessão por performance e aderência, reforça esse ciclo. O LinkedIn, que deveria ser rede, virou uma vitrine, quase um circo performativo. O currículo — que deveria contar uma história genuína de percurso, sentido e aprendizado — passou a ser tratado como uma matriz de dados: títulos, cargos, competências, datas e palavras-chave.

E o profissional, que deveria ser sujeito, virou produto de si mesmo.

Ilustração artística de um profissional moderno parcialmente formado por diferentes ferramentas de trabalho, representando a fragmentação e a busca por coerência psíquica na era da performatividade.

Mas há algo que o algoritmo não mede: o desconforto de se sentir incoerente. Mesmo quando a adaptação é necessária, a mente percebe o descompasso — o “reflexo fragmentado” entre o que se mostra e o que se é. Com o tempo, isso gera uma espécie de fadiga identitária: um cansaço não físico, mas existencial.

Ser coerente, portanto, tornou-se quase um ato contracultural. E paradoxalmente, é justamente essa coerência que confere autoridade e magnetismo. Em um mundo de múltiplas versões, quem consegue ser um só passa a irradiar confiança.

Curiosamente, até o campo do marketing organizacional reconhece a mesma necessidade de coerência — não mais apenas humana, mas também institucional. Kotler, em Marketing 3.0, dizia que a missão (essência) é o núcleo que mantém a empresa coesa, enquanto valores e estratégias podem mudar conforme o tempo. Charles Handy traduziu isso visualmente no seu “princípio do donut”: o centro é o propósito — fixo e sólido —, enquanto o anel externo é o campo da liberdade e da inovação.

O humano integral e o futuro do trabalho

Ser o mesmo em todos os lugares não é teimosia — é higiene mental. É manter o discurso alinhado ao pulso, o verbo coerente com a vibração interna. Não é resistência ao mercado; é sobrevivência dentro dele.

A saída não está em editar o perfil, mas em definir um eixo integrador — o ponto onde as vertentes da trajetória se encontram. O profissional que encontra esse eixo não se divide: ele se expande com centro. É aqui que a noção de ser humano integral se torna prática.

Abraham Maslow dizia que a realização plena não é alcançar o topo da pirâmide, mas tornar-se inteiro.
Ken Wilber, na psicologia integral, propõe que o verdadeiro amadurecimento ocorre quando razão, emoção e espiritualidade coexistem num mesmo campo de consciência.

O profissional do futuro é, portanto, aquele que sabe se adaptar sem se fragmentar. Que muda o cenário, mas preserva o núcleo. Que compreende o jogo, mas não se perde nele.

Ser um só, hoje, é mais do que coerência — é um ato de lucidez. Porque, em tempos de versões, quem permanece inteiro inevitavelmente se torna referência.

Referências

FROMM, Erich. O medo à liberdade. Tradução de Octávio Alves Velho. 20. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2015 [1941].

ROGERS, Carl R. Tornar-se pessoa: um ponto de vista da psicoterapia. Tradução de Benjamim S. Andraus e Lúcia C. S. Marques. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009 [1961].

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015 [2010].

KOTLER, Philip; KARTAJAYA, Hermawan; SETIAWAN, Iwan.
Marketing 3.0: As forças que estão definindo o novo marketing centrado no ser humano. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.

HANDY, Charles.
The Age of Paradox. Boston: Harvard Business School Press, 1994.

MASLOW, Abraham H. Toward a Psychology of Being. 2. ed. New York: Van Nostrand, 1968.
[Tradução brasileira: MASLOW, Abraham H. Motivação e personalidade. Rio de Janeiro: LTC, 2010.]

WILBER, Ken. A Theory of Everything: An Integral Vision for Business, Politics, Science, and Spirituality. Boston: Shambhala Publications, 2000.
[Tradução brasileira: WILBER, Ken. Uma Teoria de Tudo: uma visão integral para os negócios, a política, a ciência e a espiritualidade. São Paulo: Cultrix, 2003.]

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